sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Caminho de Santiago de Compostela - 1

Eduardo Santana Borges - DUDA (meu genro), inicia neste sábado, 20/08/2011, peregrinação pelo Caminho de Santiago, iniciando sua missão na cidade de Leon, num percurso de 310 km. Saiba mais sobre o Caminho lendo o texto a seguir:


"Peregrinos aglomeram-se no Caminho de Santiago
Aspirantes espirituais e andarilhos de todo o mundo redescobriram o Caminho de Santiago, a antiga rota de peregrinação cristã pela Espanha. Alguns viajantes procuram Deus, outros, sexo, enquanto alguns apenas tentam se encontrar"

Por Matthias Schulz

"Um jovem italiano aflito começou a chorar no centro do peregrino em Roncesvalles, pequena aldeia nas montanhas verdejantes dos Pirineus, ao nascer do dia. Ele teve que deixar sua companheira para trás na trilha e buscar ajuda. "Ela desmoronou!", gritava ele, com a testa pingando de suor. "Vocês vão encontrá-la a seis quilômetros daqui". Um funcionário do centro chamou o corpo de bombeiros espanhol.

Não é a primeira vez que peregrinos encontram problemas. Muitos pés delicados não são páreos para nem mesmo a primeira etapa de Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, pelas montanhas cobertas de florestas da fronteira. Os caminhantes sobem a montanha em uma estrada impiedosamente íngreme de 26 quilômetros para alcançar seu destino. Às vezes, nuvens baixas reduzem a visibilidade para apenas alguns metros.

E não melhora muito. O caminho de Santiago é a mãe de todas as caminhadas sagradas -e a mais recente moda esportiva.


Santiago de Compostela, na Espanha, ponto final da rota de origem religiosa

Mesmo no outono, centenas de caminhantes com chapéus de aba larga e varas de caminhar ainda se reúnem todos os dias na praça dos peregrinos, em Roncesvalles. O velho "refúgio", uma estrutura de pedra cavernosa sem janelas que conta com 90 beliches de ferro, está totalmente lotado. Peregrinos de bicicleta passam a noite em uma grande tenda militar. As luzes se apagam às 22h e voltam às 6h.

Não há dúvidas: o Norte da Espanha abriga um verdadeiro enxame espiritual. Mais de 120.000 peregrinos -um novo recorde- é esperado neste ano no Camino de Santiago, como a rota é chamada em Espanhol. A trilha se estende por quase 8.000 km, passa por Pamplona, pela região de vinho Rioja e pelo calor sufocante do platô castelhano, com seus campos intermináveis de trigo dourado.

No final de cada etapa diária, monges e freiras carimbam os passaportes dos caminhantes cansados. Alguns andam descalços, outros usam bicicletas, enquanto outros preferem viajar de lambreta ou a cavalo.

O destino final é a região de Cape Finisterre (literalmente, "fim da terra"), onde altos penhascos caem precipitadamente no Atlântico. A alguns quilômetros para o interior, está a cidade sagrada de Santiago de Compostela. Este é o lar da famosa catedral que abriga a tumba prateada que supostamente conteria as relíquias de São Tiago o Maior, um dos primeiros discípulos de Cristo.

No verão, os andarilhos suam de três a cinco litros de água por dia. Muitos deles andam até que seus dedos estejam cobertos de bolhas ou de feridas sangrentas. O ar nos albergues tem cheiro acre e, à noite, ressoa com um coro de roncos de abalar os nervos. Alguns peregrinos acampam ao ar livre e fazem suas abluções matinais em canais.

Enorme potencial
Hoje, os caminhantes místicos vêm de países como Brasil e Congo. No ano passado, 504 asiáticos fizeram o caminho. A proporção de mulheres é 41%.

Acima de tudo, o caminho dos peregrinos foi tomado por uma enchente de alemães. É como se eles desejassem voltar aos tempos quando cantavam alegremente canções românticas de caminhada quando pegavam a estrada e quando os clubes de caminhada no início do século 20 ajudavam milhões de jovens a redescobrirem a natureza.

Claramente, um número crescente de alemães opta pela abordagem católica ao passeio. De acordo com a Sociedade de Santiago em Aachen, o número de passaportes de peregrinos quase dobrou neste ano. Outros destinos de peregrinação também viram um rápido crescimento em popularidade, de Altötting, na Bavária, até Fátima, em Portugal. Uma pesquisa recente revelou "um potencial gigantesco não aproveitado para o turismo de peregrinação". As descobertas indicam que 20 milhões de alemães estão dispostos a amarrar as botas e marchar o caminho do fiel.

Mas como devemos entender essa forma móvel de castigo? Essa poderia ser a versão ambulante do contra-iluminismo apostólico? O que gerou esse renascimento das velhas peregrinações cristãs no Ocidente?

O impacto do fenômeno é ilustrado pelo livro do alemão Hape Kerkeling, "Ich bin dann mal weg" (agora estou em meu caminho). Após uma crise pessoal envolvendo a perda temporária da audição e uma operação de vesícula, o ator, comediante, autor se aventurou pela rota dos virtuosos, apesar de se dizer preguiçoso.

Depois de apenas alguns dias, ele começou a reclamar. "Estou totalmente doente e cansado dessa bosta de peregrinação estúpida", escreve. Resmungando e reclamando ("vou começar a reclamar agora"), ele persevera, fazendo piadas o tempo todo. Ocasionalmente, ele acha um albergue "nojento" demais e às vezes come tapas demais, forçando-o a pegar o ônibus para alcançar o fim da próxima etapa. Finalmente, ele se une a uma peregrina britânica que se parece irritantemente com o comediante falecido alemão Heinz Erhardt -que não era particularmente atraente.

Apesar de resmungar, o livro tornou-se um sucesso e passou os últimos 18 meses na lista de mais vendidos do Spiegel. Mais de 2,2 milhões de cópias foram vendidas, estabelecendo um novo recorde para um livro alemão de não ficção.

Não é de surpreender que imitadores tenham enchido o mercado com suas próprias confissões. As livrarias foram inundadas com um novo tipo de literatura sobre o despertar espiritual. Um homem escreveu sobre como percorreu o Caminho de Santiago de cadeira de rodas, enquanto outro ofereceu dicas culinárias.

Agora, uma rede de televisão belga quer entrar na onda. Em outubro, o canal ProSieben começou a transmitir "A peregrinação da grande celebridade" como exemplo do caminho. Quatro celebridades de terceira classe passeiam por uma viagem dolorosamente auto-centrada, incluindo a apresentadora de televisão Charlotte Engelhardt ("Estou sentindo 7.000 músculos") e o cantor pop Oli.P, que terá muito tempo para refletir sobre sua vida.

Durante o verão, os caminhantes têm que começar a andar às 8h, para não se atrasarem. Os que tiram uma sesta longa demais ou comem em excesso no almoço rapidamente perdem o ritmo. Mais de 85% dos peregrinos desistem antes de chegar a Santiago de Compostela.

"Irmão, não ficarás parado/ tens 100 milhas diante de ti e muitos morros". Mesmo na Idade Média os poetas tentavam estimular seus colegas. Sopa aguada e pousadas desonestas estragavam a viagem de muitos peregrinos. O único verdadeiro ponto alto da viagem era uma ocasional paquera com uma das prostitutas em todo o circuito.

E algumas coisas, aparentemente, nunca mudam. "Estou aqui pelo sexo", admitiu abertamente um jovem peregrino da Saxônia. À noite, depois de um duro dia de caminhada, os "peregrinos" gostam de se socializar nas bodegas. Eles pegam suas soluções de iodo e ungüentos e reclamam da dor nos pés. Depois, retiram-se para seus dormitórios mistos, onde as forças de atração algumas vezes se provam mais fortes do que o apelo da expiação.

"O Caminho de Santiago oferece uma religiosidade que é totalmente não supervisionada, e é isso que o torna tão popular entre os jovens", diz o historiador alemão Klaus Herbers, que dirigiu uma "semana de reflexão" no final de agosto no Château d'Orion nos Pireneus. Por sete dias, o grupo ilustre de figuras culturais proeminentes relaxou em cadeiras no gramado e bebeu vinho tinto enquanto discutia o "grande mistério do Caminho de Santiago".

Hoje em dia, em vez de vestes que pinicam, os que buscam a alma usam os mais modernos equipamentos de caminhada. Há muito, trocaram os chapéus moles por bonés de beisebol.

A questão, contudo, permanece: como o fenômeno descrito pelo jornal alemão de esquerda "Die Tageszeitung" como "a nova moda espiritual" deve ser interpretado? Evidentemente não é uma questão de tirar um tempo para sentir o aroma das rosas. "As pessoas falam de fugir da loucura da rotina e, depois, caminham 38 quilômetros em um dia", reclama um voluntário assistente da cidade alemã de Paderborn.

Talvez Deus também interceda. Pacientes de câncer, indivíduos buscando seu ser interior e pessoas que enfrentam grandes decisões de vida trilham o caminho. A maior parte dos peregrinos usa a longa estrada tortuosa para olhar para dentro e refletir sobre o sentido da vida. O autor de New Age brasileiro Paulo Coelho chamou-o de "uma forma objetiva de iluminação".

De qualquer forma, os primeiros peregrinos no século 9 se arrastavam com "lágrimas quentes nos olhos" e uma cabaça pendurada no cinto. Embarcar em uma peregrinação era aproximar-se do paraíso -"rezar com os pés". Era uma alegoria da própria vida. Com pouco mais do que as roupas do corpo, os peregrinos marchavam em agonia, sob o firmamento, na direção de sua salvação. Hoje, o sentido transcendental esvaneceu-se.

Foi apenas recorrendo a um trote medieval elaborado -inclusive com relatos falsificados - que o clero na Idade Média conseguiu atrair milhões de pessoas para fazerem a longa marcha pelo Norte da Espanha. Entretanto, o atual final da viagem -a tumba do apóstolo- perde grande parte de sua atração quando a verdadeira história aparece.

No ano de 44 dC, São Tiago o Maior foi executado em Jerusalém "com a espada", como está escrito na Bíblia. Não há dúvidas que foi enterrado na Terra Prometida.

Para de alguma forma transportar os ossos do santo para a Europa, a igreja inventou uma lenda absurda. De acordo com documentos antigos, o corpo foi secretamente levado a um barco, que chegou ao norte da Península Ibérica. Bois então puxaram o corpo para o interior. No ano de 813, um eremita viu um "sinal divino" que o levou até a tumba.

Nada disso é verdade. Até Martin Luther King suspeitava que ninguém poderia saber "se é São Tiago ou um cachorro morto" que está enterrado em Santiago de Compostela. Ele recomendou: "Deixe que quem quiser viaje, mas você fique em casa".

Há outro aspecto perturbador. O nome de São Tiago está mergulhado em sangue. Ele foi o santo oficial da "reconquista". No ano de 711, muçulmanos da África do Norte começaram sua conquista da Espanha. Uma após a outra, as cidades caíram nas mãos dos conquistadores. Mais tarde, de acordo com a história, São Tiago pessoalmente interveio com fogo e espada.

Isso não impediu o general muçulmano al-Mansur de tomar Santiago em 997 -e urinar no altar apostólico. Ainda assim, segundo a lenda, São Tiago tornou-se um vitorioso "mata mouros". Até hoje, no dia em sua homenagem, uma casa de adoração de papelão de estilo árabe é ritualmente queimada. Na cidade também há uma estátua de São Tiago montando um cavalo e, sob os cascos, corpos mutilados de homens com turbantes.

Isso é politicamente correto? Tal desempenho agradava na Idade Média brutal. Durante os tempos de ouro das peregrinações, até 20.000 penitentes chegavam de barco a cada ano da Inglaterra. Os que agüentavam as dificuldades da peregrinação poderiam esperar o perdão de seus pecados.

Atualmente, os fiéis são acompanhados de pessoas cada vez mais confusas e variadas. Há crentes no esotérico, repetidores de mantras e xamãs do Peru. Muitos deles alegam encontrar Deus no caminho -mas provavelmente estão se referindo ao efeito de endorfinas liberadas no corpo em resposta à longa marcha torturante.

Em meados da década de 1990, a atriz americana Shirley Maclaine mergulhou tão profundamente em uma série de visões confusas e dolorosas durante sua árdua viagem de expiação para Santiago que viu pirâmides, Budas sentados na posição de lótus e até buracos negros ao longo da trilha.

Ainda assim, o antigo magnetismo místico, de alguma forma, reteve seus atrativos -até para tipos com os pés no chão. Os viajantes são envolvidos por uma infra-estrutura de 1.000 anos de albergues, mosteiros e catedrais góticas. Almas de bom coração e voluntários trabalham na rota. Uma cama em um refúgio custa meros $5 euros (cerca de R$ 12). É como se você estivesse caminhando de volta a um mundo antigo perdido.

Como todo mundo ao longo do caminho é um estranho sem lar, os peregrinos constituem uma comunidade de viajantes cujo lar é a estrada. E mais, os andarilhos são cercados de cenários espetaculares. Virtualmente em câmara lenta, eles atravessam campos dourados de trigo, florestas de pinho e fiordes cheios de ostras. Eles inspiram a fragrância de tomilho e lavanda. Nas montanhas da Galícia, a névoa da manhã lembra bolas de algodão brilhantes.

É uma experiência humildante. Alguns caminhantes falam sozinhos, acompanhando os passos constantes e monótonos de seus pés; outros cantam canções infantis.

As memórias ressurgem. Os andarilhos carregam pensamentos pesados: quem sou eu? Para onde vou? E alguns até fazem a pergunta: para onde vão todas essas pessoas? No final da viagem, dizem que todo mundo chora ao menos uma vez.

A maior parte dos novos nômades espirituais chegam em um bom estado de espírito à passagem final que leva ao Monte do Gozo. Do alto, podem ver as torres barrocas de Santiago à distância. E então vem a última etapa, na qual descem uma trilha leve até a cidade sagrada.

Antigamente, os peregrinos entravam em silêncio na catedral. Eles costumavam recitar o rosário e dormir na casa tranqüila de Deus, perto dos restos terrenos de São Tiago, para encontrar a cura em sua aura.

Hoje em dia, é tudo mais barulhento. Durante a alta estação, até 40.000 visitantes passam pela cidade. Até o arcebispo, que usa uma mitra dourada na cabeça, mal consegue passar pela variedade de barracas de lembranças.

Esse desdobramento é causa de preocupação entre os amigos do Caminho de Santiago em torno do mundo. Desde que foi resgatado do esquecimento, em 1987, quando o Conselho da Europa declarou-o a primeira "rota cultural européia" no continente, o caminho tornou-se um pouco cheio e barulhento demais. Centenas de tendas do exército foram montadas neste ano para acomodar o fluxo de peregrinos, e mosteiros cistercienses foram convertidos em albergues".

Será que o velho caminho será danificado pelo seu próprio sucesso? O historiador alemão Herbers diz: "Se mais peregrinos vierem, poderemos perder a mágica."

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